quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Na escada

Texto de autoria de Ricardo Martensen

CLARO
“Segura o saco de pipoca pra eu pegar os ingressos?”. “Claro.” Ainda sobra um pouco de constrangimento. Aquele medo dos silêncios, das frases erradas. Afinal – depois de tantas noitadas – estamos sóbrios e a luz clara do Shopping não ajuda em nada. O Shopping não ajuda em nada. “Só tem um ingresso aqui moço”, dispara o porteiro impiedosamente. Parece saber de tudo. E não se importa. O embaraço do inábil ator que esquece a fala no diálogo principal, sua desastrada tentativa de improviso e a brutal incapacidade de fingir-se seguro perante aquilo que foge ao seu controle.... nada disso lhe importa. Tudo o que quer é cumprir sua obrigação: um ingresso por pessoa. “Segura a Coca também, vou ver no bolso.” Nada. “Segura aqui que vou ver na bolsa.” Pipoca e refrigerante pipocam de mão pra mão. Nada. Voltamos ao caixa, a fila é grande. Cortamos a fila (afinal temos direito, já pagamos!). Evito olhar para a pequena multidão enfileirada. Temo os comentários, talvez até uma possível represália coletiva. Me esforço para me controlar. Esse é o momento de mostrar segurança. O gerente é chamado. Tudo está muito claro. Opressivamente claro. O dinheiro é contado, o “sistema” conferido. Sim, de fato houve um erro. Ufa! Missão cumprida. Ingressos na mão (os dois) passamos triunfantes pelo mesmo porteiro.

ESCURO
Quatro pupilas contraídas entram na sala. A escuridão é quase total. Ironicamente passo a desejar qualquer nesga de luz. Essa só vem nas raras cenas claras do trailer. Merda, seria um filme de vampiro!? Os tropeções inevitáveis. A multidão de pupilas já dilatadas nos fita. Pelo menos é o que imagino. Somos uma presa fácil. E solitária. Somos nós contra eles. E eles parecem estar em todo lugar. “Ali tem.” “Não, é só uma”. “Ali também só tem uma.” Cambaleamos por toda a sala numa inútil busca enquanto os sádicos olhares anseiam por nossa reação. Meticulosamente prepararam a platéia antes de nossa chegada. Sou posto à prova novamente. “Sentamos aqui”, escuto. “Aqui?” “É, aqui.” “Tá bom.” Ainda escolho desajeitado em qual dos degraus sentar – a pipoca ainda atrapalha – quando me dou conta que vencemos. A engenharia pragmática da via de acesso somada ao escorar de nossos ombros se revelam pra mim muito mais confortáveis do que as militares fileiras de estofados e porta copos. A Coca fica melhor no chão. De repente, me viro para olhá-los (agora consigo ver tudo). Frustrados, fingem ver o filme.